quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Audiência Geral com o Papa [04.11.2009]

Caros amigos,

Nessa manhã, em audiência geral aos peregrinos no Vaticano, o Papa Bento XVI continuou sua série de catequeses. Hoje, dando prosseguimento à história do desenvolvimento da teologia, o Papa tratou de uma disputa ocorrida no século XII. Embora longo, tenho certeza de que, o texto tem muito a ensinar para a Igreja dos dias de hoje. Abaixo, segue o discurso do Papa, na íntegra.

Com afeto salesiano,
Pe. Mauricio Miranda.


Bento XVI
Audiência Geral - Praça de São Pedro
Quarta-feira, 04 de novembro de 2009


Queridos irmãos e irmãs,

Na última catequese, apresentei as características principais da teologia monástica e da teologia escolástica do século XII, que poderemos de certo modo chamar "teologia do coração" e "teologia da razão". Entre os representantes de uma e de outra corrente teologia se desenvolveu um debate amplo e, muitas vezes, inflamado, simbolicamente representado pela controvérsia entre São Bernardo de Claraval e Abelardo.

Para compreender o confronto entre esses dois grandes mestres, é necessário recordar que a teologia é a procura de uma compreensão racional, na medida do possível, dos mistérios da Revelação cristã acolhidos pela fé - fides quaerens intellectum - a busca da inteligibilidade da fé, para usar uma expressão tradicional, concisa e precisa. Ora, enquanto São Bernardo, típico representante da teologia monástica, coloca o acento na primeira parte da definição, isto é, na fé, Abelardo, que é um escolástico, insiste sobre a segunda parte, ou seja, o intellectus, a compreensão por meio da razão. Para Bernardo, a fé em si mesma é dotada de uma certeza interior fundada no testemunho das Escrituras e nos ensinamentos dos Padres da Igreja. A fé é também reforçada pelo testemunho dos santos e pela inspiração do Espírito Santo na alma de cada um dos fiéis. Em caso de dúvidas e ambiguidades, ela é protegida e iluminada pelo exercício do Magistério da Igreja. Assim, Bernardo encontra dificuldades em concordar com Abelardo e, mais ainda, com todos os que submetiam a verdade da fé ao exame crítico da razão; um exame que comportava, na opinião dele, um grave perigo, o intelectualismo, a relativização da verdade, o questionamento das verdades da fé. Nesse modo de agir, Bernardo via uma audácia que beirava a crueldade, fruto do orgulho da inteligência humana, que pensa poder "capturar" o mistério de Deus. Em sua carta, entristecido, escreve assim: "A mente humana toma conta de tudo, não deixando mais nada à fé. Enfrenta aquilo que está acima de si mesma, examina aquilo que lhe é superior, invade o mundo de Deus, altera os mistérios da fé, em vez de iluminá-los; aquilo que é fechado e obscuro, não o abre, mas o esvazia, e o que não é viável por si mesmo, o desconsidera e se recusa a crer nele"

Para Bernardo, a teologia tem um único objetivo: promover a experiência íntima e viva de Deus. A teologia é, portanto, um auxílio para amar sempre mais e melhor o Senhor... Nesse caminho, existem diversos graus que Bernardo descreve com detalhes até o ponto mais alto, quando a alma do fiel se inebria nos vértices do amor. A alma humana pode alcançar ainda na terra aquela união mística com o Verbo Divino, união que Bernardo descreve como as "núpcias espirituais". O Verbo Divino a visita, elimina suas últimas resistências, a ilumina, a inflama e a transforma. Em tal união mística, a alma goza de uma grande serenidade e doçura, e canta a seu esposo um hino de alegria. Como eu recordei na catequese dedicada à vida de São Bernardo (21.10.2009), a teologia para ele só pode se alimentar da oração contemplativa, em outras palavras da união afetiva do coração e da mente com Deus.

Abelardo, que é precisamente aquele que introduziu o termo "teologia" no sentido que nós o entendemos hoje, se põe em uma perspectiva diversa. Nascido na Bretanha, na França, este famoso professor do século XII, era dotado de uma inteligência vivíssima e a sua vocação era o estudo. Ele primeiro se ocupou com a filosofia e depois aplicou os resultados obtidos com essa disciplina à teologia, da qual foi mestre na cidade mais culta daquela época, Paris, e depois nos mosteiros onde morou. Ele foi um orador brilhante: suas palestras foram seguidas por uma multidão de alunos. De espírito religioso, mas com uma personalidade inquieta, a sua vida foi cheia de supresas: contestou seus professores, teve um filho com uma mulher culta e inteligente, Eloísa. Muitas vezes se meteu em polêmica com seus colegas teólogos, sofreu também condenações eclesiásticas, mas morreu em plena comunhão com a Igreja, a cuja autoridade ele se submeteu com espírito de fé. São Bernardo mesmo contribuiu para algumas condenações de algumas doutrinas de Abelardo no sínodo provincial de Sens, no ano de 1140, e também pediu a intervenção do papa Inocêncio II. O abade de Claraval contestava, como já dissemos, o método demais intelectualista de Abelardo que, ao seu parecer, reduzia a fé a uma mera opinião a respeito da verdade revelada. Os temores de Bernardo não eram infundados e eram condivididos por outros pensadores daquele tempo. Na verdade, o uso excessivo da filosofia enfraqueceu a doutrina trinitária de Abelardo e, dessa forma, a sua idéia de Deus. No campo moral, seus ensinamentos eram cheios de ambiguidade: ele insistiu em considerar a intenção do indivíduo como a única fonte para descrever a bondade ou a maldade dos atos morais, desconsiderando o significado objetivo e o valor moral das ações: um subjetivismo perigoso. Este é, como sabemos, um tema de grande atualidade para a nossa época, em que a cultura é muitas vezes marcada por uma tendência crescente do relativismo ético: somente o eu decide aquilo que é bom para si. Não podemos nos esquecer, porém, os grandes méritos de Abelardo que, tinha muitos discípulos e contribuiu de modo muito significativo para o desenvolvimento da teologia escolástica, destinada a expressar-se de modo mais maduro e seguro no século seguinte. Também não devemos subestimar algumas de suas idéias como, por exemplo, quando ele diz que tradições religiosas não-cristãs, estão preparadas para acolher a Cristo, o Verbo Divino.

O que podemos aprender nós, hoje, do confronto, de tons frequentemente fortes, entre Bernardo e Abelardo e, em geral, entre a teologia monástica e aquela escolástica? Primeiro de tudo, creio que nos mostra a utilidade e a necessidade de uma saudável discussão teológica na Igreja, especialmente quando os assuntos discutidos não foram definidos pelo Magistério que, por sua vez, continua sendo uma referência incontornável. São Bernardo, mas também Abelardo, sempre reconheceram sem exitação a autoridade. Além disso, as condenações que Abelardo sofreu nos recorda que deve haver um equilíbrio entre o que chamamos de princípios arquitetônicos dados a nós pela Revelação e que conservam, portanto, sempre uma prioritária importância, e aquelas interpretações sugeridas pela filosofia, ou seja, pela razão, e que têm um papel importante, mas instrumental. Quando este equilíbrio entre a arquitetura e os instrumentos de interpretação é esquecido, a reflexão teológica corre o risco de ser afetada por erros e é, então, que do Magistério se espera aquele necessário serviço à verdade que lhe caracteriza. Além disso, é bom salientar que dentre os motivos que levaram Bernardo a "tomar partido" contra Abelardo e solicitar a intervenção do Magistério, estava aquele de salvar os fiéis simples e humildes, que devem ser defendidos quando correm o risco de serem confundidos ou desviados por opiniões muito pessoais e por argumentos teológicos duvidosos, que podem comprometer a sua fé.

Gostaria de recordar, enfim, que o confronto teológico entre Bernardo e Abelardo terminou com uma plena reconciliação entre os dois, por meio da mediação de um de seus amigos, o abade de Cluny, Pedro, o venerável, de quem falei em uma das catequeses anteriores (14.10.2009). Abelardo mostrou humildade em reconhecer seus erros e Bernardo usou de grande bondade. Prevaleceu em ambos o que deve realmente estar no centro, quando nasce uma controvérsia teológica: salvar a fé da Igreja e fazer triunfar a verdade na caridade. Que esta seja, ainda hoje, a virtude com a qual se discute na Igreja, tendo sempre como meta a busca da verdade.


(tradução livre, exclusiva para esse blog)

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